Khian

Imagina por momentos, o teu último pôr-do-Sol, aquele que verás sabendo que o amanhã não chegará. E a partir desse instante, tudo te parecerá diferente... A paisagem à tua volta ganhará mais vida do que nunca, os pássaros parecerão estar em sintonia, a terra será mais perfeita, o céu mais azul, o vento sentir-se-á com outra intensidade, e os primeiros recortes da Lua no céu irão parecer-te diferentes de todos os outros que alguma vez viste... E o Sol, esse mesmo Sol, será para ti o início e o fim de tudo. Ao observá-lo, relembrarás cada dia pas

Como um momento que ganhasse eternidade, o corpo da menina ajoelhado no chão do quarto: os cabelos, finos, lisos, negros, caíam-lhe sobre os ombros numa ordem certa que ninguém escolhera; os ombros eram magros e, sobre a sua forma, pendia a camisa de dormir; pousados sobre o tapete, os pés descalços e pequenos. Também dentro desse momento, existia uma superfície invisível de paz sobre os objectos do quarto: a cómoda, os lençóis da cama, o armário. Era a noite que descansava. Em algum lugar impossível, existia um céu de estrelas e a lua. Essa era uma verdade simples como as sombras. Era uma noite de Agosto. Naquele momento parado, na respiraç

Era um caminho por onde passávamos de mãos dadas quando éramos namorados e acreditávamos apenas em coisas eternas. Tínhamos quinze anos. Era a minha mãe, com um chapéu redondo, todo enfiado na cabeça, e a minha irmã, com calções desbotados, a conversarem vozes serenas e a procurarem pinhas quase casualmente. Eu, atrás delas, calado, segurava uma saca e aceitava as pinhas que a minha mãe e a minha irmã apanhavam, e que haveriam de acender a lareira no Inverno. Tinha dez anos. Era as tardes, Maio, em que eu e a minha irmã brincávamos depois da escola e, de repente, a minha irmã ficava em silêncio, desaparecia, deixava de respirar; e eu procurav

As ruas estavam desertas e cobertas de nevoeiro. Aprovou em silêncio, abanando a cabeça. "O cenário perfeito", pensou. As primeiras luzes despontavam na madrugada fria. Começava a chuviscar. Subiu a aba do casaco coçado e resmungou entre dentes. Só o ruído dos seus sapatos no paralelo cortava o silêncio. Apressou o passo. Já perdera demasiado tempo. Chegou lá poucos minutos depois. Encostou o peito na guarda de ferro e tirou o maço de tabaco do bolso num gesto lento, tentando imitar um dos seus heróis do cinema clássico. Talvez John Wayne, porque não. Fumava John Wayne? Hesitou. Claro que sim, qualquer actor daquele calibre fumava, nessa altu

Era o vento que obrigava os ramos das laranjeiras a dobrarem-se e a arranharem os vidros das janelas. O céu da madrugada era atravessado por exércitos de nuvens. Na distância que podia ser vista a partir do telhado da casa, os campos entregavam-se ao horizonte. Depois de paredes grossas, no quarto, as sombras eram definidas por uma única nesga de claridade que se estendia vertical da porta. Ao lado da cama, no chão, estava a mala. As portas do roupeiro estavam abertas. O espelho reflectia sombras. As gavetas da cómoda estavam abertas. Ele não fazia barulho quando escolhia uma camisa, a desencaixava do cabide, como se lhe tirasse os ossos, e a